A "Questão de Coimbra" e a queda em descrédito de Manuel Pinheiro Chagas

Manuel Joaquim Pinheiro Chagas (conhecido principalmente como Pinheiro Chagas até ao surgir do político republicano moderado João Pinheiro Chagas ou João Chagas) foi um escritor com uma produção enorme, que nasceu em Lisboa a 13 de Novembro de 1842 ao major do exército, secretário particular do Rei D. Pedro V e veterano das Guerras Liberais portuguesas e sua esposa Gertrudes Justiniana Gomes Ramos. Destinado pelos pais a uma carreira militar, foi aluno do Colégio Militar, da Escola do Exército e da Escola Politécnica de Lisboa (tendo sido em todas estas um aluno brilhante com um interesse pela escrita desde então), chegando no exército ao posto de Capitão, interrompendo a carreira militar em 1866, altura em que já tinha publicados dois poemas.
Pinheiro Chagas
Foi depois disso que se dedicou a tempo inteiro não só ao jornalismo (escrevendo para muitos jornais e dirigindo muitos outros, tornando-se notório por um estilo que privilegiava a crítica social e dos governos, mistura de jornalismo noticioso e intervenção política) como à escrita, e envolveu-se na polémica entre as correntes de escrita do Romantismo e do Realismo, a "Questão Coimbrã" ou "do Bom Senso e Bom Gosto", sendo ele aliás o motivo da discórdia: a "Questão" começou com uma carta que um dos "pais fundadores" do Romantismo português, António Feliciano de Castilho, escreveu como prefácio ao Poema da Mocidade (1865) do próprio Pinheiro Chagas; o prefácio criticava abertamente alguns jovens escritores não-Românticos da época. De um lado das 'hostilidades', tínhamos Pinheiro Chagas, o filho de A. F. Castilho, o jornalista e escritor Júlio de Castilho, o dramaturgo e estudioso de literatura Brito Aranha, Camilo Castelo Branco (ironicamente um dos precursores do Realismo em Portugal, apesar de escrever Realismo dentro dos limites do melodrama Romântico) e Ramalho Ortigão (que pouco depois 'virou', e associou-se aos membros dos Realistas de forma pessoal), do outro o escritor e antropólogo Teófilo Braga, o poeta Antero de Quental, e o autor da obra 'coberta' na primeira publicação deste blogue, Eça de Queirós.
Este evento é um pouco mal-registado pelos historiadores e historiadores culturais de hoje. É frequente hoje os historiadores 'tomarem' o lado dos Realistas e analisarem isto como um confronto entre o conservadorismo e o reformismo que ocorria na altura, mas isto não é completamente preciso. É claro que o Romantismo, e a variante radical da segunda geração romântica chamada Ultra-Romantismo, representavam a norma, em termos de cultura, na altura, e o Realismo e a sua variante mais radical chamada Naturalismo, representava uma proposta para rever a cultura da época, mas a expansão para a política desta questão que os analistas da questão pelos olhos de hoje em dia, é uma forma errada de analisar a questão, insinuando até nesta questão cultural um dos primeiros confrontos entre monarquismo e republicanismo. Não se pode procurar uma esquerda e uma direita nesta questão no sentido moderno do termo, mesmo o único socialista claro, Antero, era ambíguo quanto à questão de regime, tendo a princípio defendido o Republicanismo mas depois afirmando que «a pior coisa que nos [aos Portugueses] podia acontecer era sermos república amanhã», e sabe-se que desde estes tempos que havia uma tensão entre os Republicanos 'puros' ("históricos", como há já muitas décadas chamamos a esta corrente) como Teófilo (que sempre viram a República como Estado liberal burguês e não operário socialista) e os socialistas como Antero (que achavam esse regime burguês reprovável).
Quanto a outros membros do grupo atacante na "Questão", Eça não era nenhum defensor de levantamentos de massas, do republicanismo e da mudança plena da estrutura socioeconómica tradicional (de tipo socialista ou anarquista), sendo acima de tudo um crítico irónico do Estado do país, que a cada ano que passava fica menos dado a retórica de ruptura, daí que em política Eça oscilava entre a apatia irónica e uma fusão de progressismo e conservadorismo, tendo terminado a vida como um patriota crítico um pouco mais desassociado da urbanização e do cosmopolitanismo da imitação parola do estrangeiro, sendo compreensível a análise de um Eça direitista pelos pensadores da corrente de direita tradicionalista do Integralismo Lusitano (que viram em Eça e outros críticos sociais dos seus círculos sociais, precursores da sua ideologia).
É claro que muitos dos Românticos desta questão eram da direita conservadora monárquica (o Partido Regenerador), sendo excepção o autor do livro desta publicação (que agia na política como membro do Partido Constituinte, uma dissidência da 'esquerda' dos Regeneradores) que famosamente disse que a solução para punir um membro feminino da Comuna de Paris de 1871 era somente uns açoites no posterior, o que valeu ao então deputado Pinheiro Chagas umas bengaladas de um anarco-comunista), mas muitos dos Realistas não diferiam muito em ideais destes, sendo claro que Eça, Ramalho e outros pegavam muito na crítica social e na teoria da história portuguesa de Alexandre Herculano, um dos fundadores do Romantismo (e membro da 'ala esquerda' da direita conservadora monárquica), em que os Descobrimentos eram simultaneamente a 'idade de ouro' e o princípio da decadência lusa, porque na sua análise se viu aí o 'esticar' do Estado centralizado português, o absolutismo lentamente foi-se instalando e o colonialismo foi trazendo riquezas que corromperam os Portugueses e a sua elite (em vez de criar riqueza nacional). Esta era praticamente a análise de Antero de Quental, Eça ou o associado deles J. P. Oliveira Martins, sendo que Pinheiro Chagas e outros Românticos eram também críticos da percepção de decadência do país e não nacionalistas acríticos. Mesmo um grupo posterior 'herdeiro' do lado Realista da "Questão", os "Vencidos da Vida" (agora já "extirpado" dos Republicanos do grupo), pretendiam servir como "fornecedores de ideais" para o reinado do Rei D. Carlos e incluíam um político católico que fundia progressismo e conservadorismo católico, o clérigo laico António Cândido Ribeiro da Costa.
Os «Vencidos da Vida», um grupo reformista crítico mas burguês.
Eça de Queirós é o segundo a contar da esquerda na fila sentada e António Cândido Ribeiro está no canto extremo-direito da fila sentada
Na literatura a diferença e ruptura entre os dois lados também era algo relativa. A questão era tão pessoalizada e não completamente clara literariamente que muitos dos ataques eram pessoais (Antero e Teófilo atribuíam a fama de Feliciano de Castilho ao facto de ser cego; um dos poucos casos quase literais de "bater no ceguinho", e Camilo escrevia um opúsculo contra as críticas Realistas apesar de admitir que não sabia bem o que estava a discussão), e isto compreende-se: afinal, apesar de Teófilo Braga louvar o Realismo e o Naturalismo nos seus ensaios sobre literatura, não achava o Romantismo sem valor na sua monumental História da Literatura Portuguesa e as suas obras originais (os seus poemas, alguns deles até vagamento épicos, os Contos Fantástico de "Romantismo negro" e 1865, o seu poema dramático sobre São Frei Gil e o romance "narrativa epo-histórica" Viriato de 1905) são em temas e tom mais Românticos que outra coisa, Eça pregou por escrito o Naturalismo (a corrente Realista que não só escreve enredos contemporâneos realistas mas procura escreve-los com análises científicas das raízes educacionais e físicas dos problemas sociais) mas só o praticou ocasionalmente (talvez o exemplo mais 'puro' sendo O Crime do Padre Amaro), e apesar de parodiar os leitores 'iludidos' do Romantismo na protagonista d'O Primo Basílio, escreveu muitos contos, novelas e romances fantasiosos (como O DefuntoO Mandarim e A Relíquia) e até obras passadas no passado (como o romance-dentro-do-romance em A Ilustre Casa de Ramires e muitos dos seus contos), embora com alguns Realismo irónico sempre presente, e mesmo muitas das suas obras "Realistas" são melodramas Românticos que também servem para crítica social (como A Tragédia da Rua das Flores e Os Maias) em que o formato do melodrama não é parodiado mas usado (mostrando o quão pouco dogmático Eça era), outros membros desta "Geração de 1870" foram pouco dados a literatura mas quando a produziam era em géneros mais Românticos como o romance histórico (caso de Oliveira Martins) e curiosamente os ficcionistas mais puramente Realistas/Naturalistas da época estão hoje esquecidos e nem foram muito activos na "Questão".
E quanto aos Românticos, muitos deles era louvados pelos da "Geração" (caso do épico Tomás Ribeiro louvado por Teófilo) e havia algumas colaborações literárias e associativas frequentes entre membros de ambos os lados. E não esqueçamos ainda que Castilho na carta-prefácio ao poema de Pinheiro Chagas que começou tudo criticava não só dois poetas Realistas, Teófilo e Antero, como um escritor de discursos nada Realista, Vieira de Castro (o que prova que isto não era só um conflito racional de correntes de escrita mas entre ideias pessoas de 'bom senso' e 'bom gosto'), e ainda o caso peculiar de Ramalho, que 'mudou de equipa' e simultaneamente foi o mais Realista de todos (visto que fora a co-autoria com Eça do policial O Mistério da Estrada de Sintra e o seu livro Contos Cor de Rosa só escreveu textos puramente descritivos da realidade) e em estilo de escrita o mais Romântico de todos (e Ramalho é incontestavelmente o mais conservador da "Geração", mesmo depois de 'mudar de equipa', tendo mesmo no final da sua vida alinhado no já referido Integralismo Lusitano e dito que este movimento continuava o espírito da "Geração", pelo menos na sua opinião pessoal).
Parte da "Geração de '70": Eça, Oliveira Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Bernardo Pinheiro Correia de Melo, 1º Conde de Arnoso(?)
Discutido isto, podemos falar de como Pinheiro Chagas 'caiu' em desgraça (e no esquecimento) como escritor, e mesmo sequer enquanto pessoa que existiu. Ora, graças ao revisionismo histórico da "Questão", a "Geração" ficou vista como o 'lado bom' e os seus opositores como 'o lado mau', e um bando de sem-talentos; este revisionismo foi feito por todos os regimes da República Portuguesa, primeiro pelos Republicanos (aumentando o papel do republicanismo na inspiração da "Geração de 1870" e por isso representando-os como 'os bons'), depois pelos Salazaristas (que, tal como os Integralistas Lusitanos, viram na "Geração" e grupos 'derivados' um grupo crítico da democracia liberal, nacionalista e contra o ideal do Partido Republicano Português) e ao fim pelos democratas esquerdistas republicanos da oposição ao Estado Novo e depois já do regime democrático (novamente exagerando a inspiração do republicanismo e identificando a "Geração" ou com um cosmopolitanismo anti-tradicionalista e anti-patriótico ou um patriotismo revolucionário social),Todos foram vistos como cópias inferiores de Herculano, Almeida Garrett e Camilo, exageradamente Românticos, de escrita demasiado 'cor-de-rosa' e tonta. Ora, a escrita de Pinheiro Chagas, tendo sido a 'causa' do começo da disputa, e tendo ele mantido uma polémica de anos com Eça (começada por Pinheiro Chagas usar o seu cargo de professor de Literatura Clássica do Curso Superior de Letras para defender as suas ideias políticas, pelo que muitos o criticaram e criaram questiúnculas pessoais com o escritor, tendo sido a mais longa, a questão com Eça, que lhe chamava, por conta do seu passado militar, "brigadeiro Chagas", durando a polémica 20 anos), era obviamente Pinheiro Chagas o Romântico que fazia maior 'papel' de 'mau da fita' nesta visão preto-e-branco da "Questão", até porque (como provou uma sondagem aos leitores do jornal O Imparcial de Coimbra, chamada de «plebiscito literário») Pinheiro Chagas era o 2º mais respeitado e lido escritor da altura, depois de Camilo e antes do historiador e propagandista republicano José Maria Latino Coelho, e de toda a "Geração de '70": pela ordem dessa sondagem, Eça, Ramalho, Teófilo, Oliveira Martins e Guerra Junqueiro (como a popularidade de todos estes autores mudou desde então...).
Assim, a imensa popularidade de Pinheiro Chagas no coração dos leitores do seu tempo e imediatamente depois, o sucesso de venda de praticamente todas as suas obras no momento de publicação e a enorme divulgação por uns anos, a partir da morte do autor (de ferimentos das bengaladas do referido professor anarco-comunista dos quais nunca recuperou) em 1895, ele viu-se votado ao esquecimento quase total. Muita da razão disso é o facto de a polémica de Pinheiro Chagas com essa o ter tornado pouco apreciado pela geração de intelectuais que se seguiu a Pinheiro Chagas e Eça, que tinha este último em boa conta. Isto não impediu que algumas obras do autor fossem editadas com algum sucesso depois, por exemplo a peça A Morgadinha de Valflor de 1869 foi um sucesso relativo e várias vezes encenada por grupos de teatro amador ao longo do século XX, as suas traduções de Júlio Verne e Daniel Defoe (autor de Robinson Crusoé) continuaram a ser publicadas e lidas por muitos anos, o seu romance A Mantilha de Beatriz ainda tinha edições infanto-juvenis nos anos de 1990 (e dera origem a um filme luso-espanhol dos anos de 1940), e a sua História Alegre de Portugal é ainda algo célebre graças à adaptação a BD do cineasta de animação e desenhador de BD Artur Correia.
O merecimento de Pinheiro Chagas de um maior reconhecimento como autor e figura cultural pode ser atribuído a várias razões, entre as quais a sua dramaturgia de vocação popular (com várias peças dele sendo populares na altura, e algumas até ficando em cena mais de um século), a sua administração como Ministro da Marinha e Ultramar, exactamente durante a partilha de África, o seu trabalho no exército após o regresso à carreira militar após se tornar Ministro, as suas intervenções participativas e combativas de deputado e, já nos últimos anos de vida, de par do Reino, apesar de não ter grande linha de pensamento comum fora a sua postura conservadora colonialista, e o trabalho de co-fundador da Sociedade de Geografia de Lisboa, a sua escrita de livros de história detalhados mas com correcção histórica debatível, embora lhe tenha valido a eleição a sócio efectivo em 1866, e secretário-geral em 18?? da Academia das Ciências de Lisboa, a sua co-fundação da Sociedade de Geografia de Lisboa e a sua presidência da Junta do Crédito Público entre Agosto de 1893 e a sua morte. Mas a sua principal razão para a (pouca) fama que tem hoje é o de ter (pelas suas traduções e as suas obras originais) sido um dos introdutores do romance de aventuras em Portugal, sendo provavelmente o autor que mais se aproximou de Alexandre Dumas em Portugal, criando estórias de capa-e-espada portuguesas.

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